Cilada: como a falta de tempo, o consumismo e o individualismo superficializaram a sua vida



É inegável que a ciência e a tecnologia trouxeram uma quantidade imensa de benefícios para a humanidade. Para constatar isso, basta lembrar o aumento na expectativa de vida que ocorreu no último século. A qualidade de vida também melhorou muito. Mil vivas para a ciência e a tecnologia!
Por outro lado, parece que caímos em uma cilada: muitos visionários e ficcionistas de antigamente acreditavam que a ciência e a tecnologia trariam a liberação do nosso tempo para as relações sociais e para o lazer. Os computadores e as máquinas fariam boa parte do trabalho e nós teríamos mais tempo para cuidar das nossas relações e para aproveitar a vida. Infelizmente estas previsões não se confirmaram e tudo indica que as coisas não tomarão este rumo em um futuro próximo.
Hoje, que temos muito mais tecnologia do que poderíamos imaginar a algum tempo atrás, trabalhamos tanto quanto ou muito mais do que antes. (Por exemplo, há pouco tempo atrás uma revista de grande circulação publicou uma pesquisa que revelava que, em média, os executivos de nível superior trabalhavam mais que onze horas por dia!). O telefone celular e os computadores nos mantêm conectados com o trabalho o tempo todo, onde quer que estejamos. Os novos bens, que são lançados a todo o momento, despertam a cobiça e a necessidade de trabalhar mais para comprá-los. Não que consigamos usufruí-los proporcionalmente ao que custam. Muitos deles apenas ajudam a compor o nosso status.
Um dos motivos da diminuição das horas de trabalho aquém das expectativas aconteceu por um motivo que parece justo e razoável: parte das horas de trabalho que não foram diminuídas, apesar do progresso, serve para pagar as melhorias que aconteceram em diversas áreas da nossa vida. Por exemplo, é só comparar a quantidade de aparelhos que melhoram a nossa vida, que estão presentes nas residências, com a quantidade de aparelhos desse tipo que havia nos lares há cem anos atrás.
Outra parte das nossas horas de trabalho que poderia ter sido diminuída, no entanto, é dedicada para pagar bens que contribuem pouco para o nosso conforto, mas nos fazem sentir que somos pessoas bem sucedidas, vitoriosas e diferenciadas.  (Este sentimento, dentro de certo limite, poderia ser considerado uma necessidade humana e legítima: necessidade de poder ou de visibilidade. A compulsão desenfreada e insaciável por eles é que é problemática).
Essa sensação de superioridade dura pouco, porque logo outro produto “para pessoas superiores” é lançado e a necessidade ressurge. Aqueles que produzem estes produtos e seus colaboradores descobriram como inutilizar rapidamente os seus efeitos psicológicos após um tempo de boas vendas ou quando os concorrentes começam a fazer o mesmo. Muitos destes produtos raramente são usados. (Há pouco tempo li uma entrevista de uma pessoa famosa que afirmou que possuía um relógio caríssimo, mas que, no dia a dia, só usava uma reprodução barata, e deixava o original bem guardado. Um amigo meu comentou jocosamente que também só usava a réplica e deixava o original guardado na loja, porque lá ele era bem cuidado e estava mais seguro!).
Este tipo de compra que serve apenas para promover o status e a sensação de superioridade acabou se tornando a cenoura que é perseguida incessante e inutilmente pelo burro (ela está sempre à frente dos seus olhos porque está atada na ponta de uma vara cuja extremidade oposta está presa ao arreio). O pior de tudo é que o esforço despendido neste tipo de busca acabou tomando boa parte dos nossos dias em detrimento das nossas relações.
Um estudo apresentou evidencias de que a quantidade de felicidade está relacionada ao nível de rendimentos até uma renda per capita de $70. 000,00. Depois deste nível de renda, o determinante mais relevante do grau de felicidade é a comparação com a renda do grupo de referência. A seguinte piada ilustra bem esse princípio: um desenho mostra três homens em um escritório. Dois deles estão conversando, um funcionário e seu chefe. O terceiro está mais distante e não está participando da conversa. O funcionário diz para o seu chefe: “Sei que você não pode aumenta o meu salário. Mas daria para reduzir o dele?”.
Nem sempre é a comparação com as pessoas do grupo de referência que gera necessidade de adquirir novos bens ou os promotores do estilo de vida (viagens, frequentar lugares badalados, etc.) que produzem esse efeito. Os vendedores de ilusões descobriram outras formas de fazer que você se sinta bem através da aquisição de produtos. Certas propagandas, por exemplo, associam pessoas famosas ou bonitas com a posse de um determinado carro. Fica implícito que, ao possuir tal carro, você também adquirirá, pelo menos em parte, o status, o poder ou o charme daquela pessoa. O que eles estão vendendo, portanto não é o carro. Estão vendendo a promessa de que a sua imagem será melhorada através da aquisição do produto. Talvez você até sinta-se melhor na ocasião de tal aquisição, mas isso dura pouco. Logo lá está de novo a pessoa famosa ou bonita, ou alguém equivalente, usando uma versão mais recente do tal carro ou outro carro. Pronto! Novamente você vai ter que trocar de carro para sentir-se de novo como aquela pessoa. Você vai ter que trocar o seu para não se sentir fracassado ou ultrapassado.
Você foi capturado em uma cilada da qual, tal como acontece em muitas chantagens onde nunca conseguirá adquirir todas as provas que estão sendo usadas contra você, não sairá facilmente. Vai ter estar sempre pagando ao chantagista com a esperança que, desta vez, ele entregou todas as cópias do documento que ameaça divulgar!
Esta corrida do burro atrás da cenoura não termina nunca. Estamos presos em uma cilada recorrente!

Superficialização dos relacionamentos devido à falta de tempo, ao consumismo e ao individualismo

Descompromisso com os amigos

Aquela AMIZADE “para o que der e vier” que havia em outras eras, agora ficou reduzida ao “apoio moral” e ao “torcendo por você”. Agora vale o ditado: “Amigos... amigos. Negócios à parte”. Aquilo que agora chamamos de amizade, é uma versão reduzida e minguada da AMIZADE que era valorizada em outras épocas.
Atualmente a prioridade é a realização pessoal. As outras relações têm uma importância muito pequena perto dessa prioridade  puramente individualista. Já vi muita gente despedir do trabalho os próprios amigos porque eles não atendiam perfeitamente as funções profissionais ou porque outras pessoas podiam fazer isso melhor que eles. Eles foram tratados com o "profissionalismo" que a função do chefe-"amigo" exigia. (Profissionalität über alles!)

Descompromisso com a família

Há algum tempo atrás as pessoas conviviam muito mais com a família extensa: pais, filhos, primos, netos e agregados formavam uma unidade afetiva, econômica e social. Este tipo de organização familiar não é compatível com uma sociedade onde a prioridade máxima é o dinheiro. Esse tipo de vinculo envolve o interesse de muita gente que pode ser colocado antes do interesse da empresa. Para atender as novas exigências a família foi reduzida ao tamanho mínimo: a família nuclear, que prevalece atualmente, é constituída apenas pelo casal e filhos.

Descompromisso com os filhos

A dedicação aos filhos é incompatível com as atividades profissionais nos moldes atuais do nosso sistema econômico e de consumo. “Não tenho tempo”. “Tenho que trabalhar”. “Estou lutando pela família”. Estas expressões são as desculpas que justificam passar quase o tempo todo fora de casa, sem contato com a família. Elas são legítimas quando realmente é necessário garantir as condições básicas para a sobrevivência e uma boa dose de conforto para família (comida, moradia, educação, segurança econômica). Elas, no entanto, muitas vezes, escondem a opção por outras prioridades, principalmente quando estas condições já estão garantidas e, mesmo assim, a pessoa continua a perseguir mais dinheiro e mais poder.
Agora, o que importa é a “qualidade” das poucas horas que são passadas com eles. Primeiro foram os pais que tiveram que se ausentar, por cada vez mais tempo, para “ganhar a vida”. Recentemente as mães seguiram o mesmo caminho. Elas conquistaram o direito e o dever de também prover a família e realizarem-se profissionalmente. As funções de pai e mãe cada vez mais estão sendo delegadas à escola, aos colegas, às empregadas (para os mais abastados), aos tutores e preceptores (para os mais abastados ainda), à televisão e, finalmente, à internet. É uma geração cada vez mais sem família, criada e educada pelos profissionais da educação, pelos colegas da própria idade e por anônimos que habitam a internet e a televisão. Admirável mundo novo!

Descompromisso com o relacionamento amoroso

O compromisso é o ingrediente mais estável de um relacionamento amoroso. O amor é bastante instável. Em certos dias estamos morrendo de amor e em outros estamos preocupados com outros assuntos e pensamos pouco no amado. A intimidade passa por grandes oscilações. Se baseássemos na quantidade de amor que sentimos pelos parceiros amorosos e nas motivações para trocar intimidades com eles, nos separaríamos várias vezes e voltaríamos a nos casar com eles várias vezes por mês, senão por semana e, talvez, por dia. Isso não acontece porque sabemos que estes ingredientes são voláteis. O que é mais duradouro é o compromisso. Estes três ingredientes afetam-se mutuamente. Por exemplo, a sensação de compromisso diminui quando a intimide, o amor e o desejo sexual deixam de existir por muito tempo.
As pessoas que trabalham fora de casa passam mais tempo com outros possíveis parceiros amorosos do que com o próprio cônjuge. O trabalho em um local que concentra homens e mulheres foi uma grande conquista. Por outro lado multiplicaram-se as condições que induzem e facilitam a traição (Share Hite relata no seu livro “Sexo e Negócios” que mais de 60% das pessoas que trabalham juntas já tiveram um relacionamento amoroso com um colega)
Há cerca de trinta anos atrás o havia o desquite, mas não o divórcio. Atualmente o divórcio pode ser obtido com relativa facilidade: os casais que não tem filhos e pendências sobre os bens não precisam da intervenção de um juiz para se separarem. Isto pode ser feito diretamente em um cartório, com o auxílio de um advogado.
Antigamente o regime de casamento era com comunhão total de bens. Agora é o de comunhão parcial. Vários casais estão optando pelo pacto antenupcial que inclui a separação total de bens.
Estes regimes que segregam os bens são uma espécie de declaração de ciência e atestado sobre a efemeridade do relacionamento. Esses pactos são uma espécie de acerto pré-nupcial sobre como proceder na hora da separação, caso ela ocorra. O pacto antenupcial que inclui a separação total de bens vai além: é uma espécie de desvinculação econômica das perdas e ganhos que poderão ocorrer com cada um dos cônjuges durante a vigência do casamento: é uma espécie de “cada um por si”, nesta área. A parte mais pobre geralmente fica ressentida com esta decisão que, de antemão, estabelece que o seu destino não está tão unido assim com a do cônjuge mais abastado. Isto, por si só, gera um primeiro obstáculo inicial que contribui para que o casamento não dê certo. 
Como sair dessa cilada?

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