CANÁRIOS REJEITAM COMIDA ORGÂNICA


Fonte: Folha.com, Marcelo Leite

Nas nações mais afluentes do mundo, Estados Unidos e Europa, os alimentos ditos "orgânicos" já representam 2% a 3% de toda a comida vendida. Um mercado avaliado em R$ 64 bilhões anuais, que cresce à taxa de 14%.
No Brasil, a área ocupada por plantações naturebas não alcança 2% da superfície cultivada. Em alguns hipermercados, por outro lado, a oferta de produtos orgânicos aumenta em 20% a 40% anuais. Isso apesar de custarem cerca de 40% mais que a comida convencional.
Cada vez mais gente se sente atraída pelos gêneros produzidos sem pesticidas e fertilizantes artificiais, considerados mais saudáveis. Só falta convencer canários e outros passarinhos da superioridade dos orgânicos. Sério.
O estudo de Ailsa McKenzie e Mark Whittingham, da Universidade de Newcastle (Reino Unido), bem que pode acabar reproduzido nos "Anais de Pesquisa Improvável", o pseudoperiódico científico inventado pelos mesmos organizadores do Prêmio IgNobel. O título soa levemente humorístico: "Pássaros preferem trigo convencional a orgânico quando têm livre escolha".
O trabalho resulta de pesquisa que durou três anos. Saiu numa publicação respeitável, o "Journal of the Science of Food and Agriculture" em 19 de maio. A chave da preferência canária parece estar no conteúdo proteico mais elevado do trigo convencional (e depois dizem que eles é que têm cérebro de passarinho...).
"Nossos resultados sugerem que o dogma corrente de que alimentação orgânica tem preferência sobre a convencional talvez não seja sempre verdadeira", afirma McKenzie em comunicado da universidade, não sem algum eufemismo. Para ela, os achados deverão despertar "considerável interesse no público no debate sobre os méritos relativos da comida orgânica para pássaros e animais".
Pássaros e animais? Conta outra. O alvo óbvio da pesquisa é a alimentação de seres humanos. Os bichos entram na história só porque os adeptos dos produtos naturais têm uma tendência a considerar suas preferências mais sábias que as nossas, porque não influenciáveis pela cultura (leia-se: marketing).
McKenzie e Whittingham implicaram com os estudos anteriores, que em geral mostravam a preferência dos animais por alimentos orgânicos. Desconfiaram que os autores não tinham dado tempo suficiente para os bichos aprenderem a diferença entre os dois tipos de comida oferecidos. Não encontraram nenhum experimento que tivesse durado mais de sete dias.
Para eliminar a possibilidade de que a escolha resulte de características como cor, forma e tamanho dos grãos (no caso de passarinhos), o alimento precisa ser oferecido com a mesma aparência. McKenzie e Whittingham moeram e peneiraram os grãos de trigo - todos da mesma variedade comercial britânica Alchemy, mas cultivados de modo diverso, segundo os métodos da agricultura tradicional e da rival dita "orgânica" (um nome de fantasia, diga-se, porque plantas são plantas, orgânicas por definição).
Realizaram então quatro séries de experimentos que duraram várias semanas, cujos detalhes não cabe aqui elencar. Basta dizer que, usaram tanto pássaros em cativeiro --12 canários-- quanto de espécies silvestres. Neste caso, contaram com a ajuda de 36 proprietários de jardins que aceitaram instalar os comedores e deram acesso aos pesquisadores para reabastecimento e medições.
Por que várias semanas? Os pesquisadores raciocinaram que os pássaros só tinham a posição das tigelas para diferenciar os dois tipos de comida. Os benefícios de um e de outro tipo, por não serem em princípio associáveis com sabor ou outras dicas sensoriais e exercerem efeitos apenas internos (melhor nutrição), exigiriam mais tempo para serem discriminados pelas aves.
Com efeito, os primeiros dias e semanas não revelaram preferência alguma. Ela surgiu depois, e de forma consistente. No laboratório, os canários consumiram 66% mais trigo convencional do que orgânico. Nos 32 jardins que terminaram efetivamente visitados por passarinhos, o escore foi de 55% a 60%.
O quarto experimento foi planejado especificamente para discriminar a importância do teor de proteína como fator de preferência. Variedades convencionais de trigo foram cultivadas com diferentes quantidades de nitrogênio como fertilizante e se tornaram mais, ou menos, nutritivos no aspecto proteico (mas consideravelmente similares em outros fatores nutricionais).
Oito de cada grupo de nove pássaros consumiram as variedades com mais proteína. Vários testes foram realizados para determinar --em verdade, excluir-- se outros parâmetros poderiam estar influenciando as preferências passarinhas: contaminação por metais pesados, contaminação bacteriana, substâncias produzidas pelos vegetais (metabólitos) e contaminação por toxinas de fungos. Nenhum deles, exceto o teor de proteína, apresentou diferenças estatísticas suficientes para explicar o consumo diferenciado.
Não tenho dúvida de que os autores de estudos prévios e os defensores ferrenhos de alimentos saberão encontrar muitos defeitos no trabalho. A bola está com eles. McKenzie e Whittingham, que não parecem tontos, sugerem no final do artigo que mais estudos sejam feitos, com outras espécies de animais (humanos?), para testar a generalidade de seus resultados.
Por ora, McKenzie trata de precaver-se: "Este estudo só olhou para um aspecto do debate sobre comida orgânica --não leva em conta as implicações para a saúde, ou o impacto muitas vezes negativo do uso de fertilizantes químicos e pesticidas na agricultura convencional; por exemplo, outros trabalhos têm mostrado que pesticidas podem reduzir fortemente a disponibilidade de sementes para os pássaros."
É uma forma elegante de dizer que experimentos com passarinhos não vão resolver o debate mais amplo sobre a sustentabilidade da agricultura contemporânea. Mas que eles podem ajudar a quebrar alguns preconceitos, isso podem.

Nenhum comentário: