Fonte: Luiz Rivoiro
O que é um filme "para crianças"? Ou, reformulando, o que seria um filme "adequado" para menores? Assim como uma infinidade de questões acerca do futuro da humanidade, essa é uma pergunta que me faço quase todos os finais de semana quando me pego planejando com os garotos a nossa próxima ida ao cinema. Muita gente pode achar isso tolice, já que tem a resposta na ponta da língua: "Ora, qualquer produção que apresente bichinhos fofos, animais falantes ou crianças espertinhas, algo como Backyardigans e Pinky Dinky Doo, certo?" Huuuummm... Sim. Não. Mais ou menos.
Cada vez mais, no entanto, a chamada indústria do entretenimento vem se sofisticando e introduzindo questões complexas em suas produções voltadas para o público infantil. Já falei aqui, por exemplo, de UP - Altas Aventuras, da Pixar. Seu foco é obviamente a criança, mas é impossível ignorar o apelo e a enorme carga de significados que sua sequência inicial sobre a passagem do tempo, vida e morte capaz de tocar fundo qualquer adulto e, ainda assim, encantar o público infantil. Esse é apenas um exemplo de temas ditos "adultos" introduzidos de forma consciente em tramas aparentemente pueris. Há outros, claro, como a questão da preocupação com o futuro do planeta em Wallie., também da Pixar, ou a descoberta do ser "humano" para além da aparência exterior em Shrek, da Dreamworks, ou ainda sobre a consolidação da amizade apesar das diferenças, como vemos em A Era do Gelo, da Fox. Mas não é só isso. Para além dos chamados temas "nobres", existe uma outra vertente. Mais cruel. E, ao meu ver, igualmente necessária.
Nesta categoria, encaixam-se especificamente os filmes dirigidos/produzidos por Tim Burton. Seus personagens quase sempre não são bonitos. Muito pelo contrário. São feios. Melhor, horrorosos. Por dentro e por fora. Expõem na sua bizarrice o que há de pior no ser humano. Dê uma olhada em A Fantástica Fábrica de Chocolate, por exemplo. Ninguém ali, salvo o garoto Charlie e sua família, é lá muito normal. Williy Wonka chega mesmo a apresentar sinais claros de sadismo ao "punir" as crianças que visitam a sua fábrica (e olha que a versão de Johnny Depp dá uma suavizada no personagem interpretado por Gene Wilder na versão de 1971, ainda mais cruel). E dá para dizer que é um filme para crianças? Claro que sim! Os meninos lá em casa adoram! E não é só esse.
Mais sinistros, O Estranho Mundo de Jack, A Noiva Cadáver, 9, Alice no País das Maravilhas ainda tem a ousadia de falar de aberrações, monstros, fantasmas, vampiros, cadáveres, bonecos nada bonitinhos, personagens amalucados. Os temas e a paleta de cores vão muito além do universo "azul bebê e cor de rosa e bichinhos cuti-cuti" que normalmente povoam o imaginário que os pais insistem em construir para seus filhos. Mas o mundo afinal de contas não é assim? Por acaso não devemos nos acostumar com a existência da morte em nossas vidas? Ou com todo o "dark side" da raça humana? Ou, enfim, com a existência do mal? A meu ver, sim.
Claro que não acho que as crianças devam ser expostas a altas doses de violência, sangue, tripas, torturas ou coisas do gênero. Óbvio que não. Cada coisa a seu tempo, sem dúvida. Mas considero válida a proposta de Burton de tratar de temas aparentemente "tabus" de maneira ao mesmo tempo criativa e bizarra. E as crianças sabem o que está rolando. Quando Jack sequestra o Papai Noel para se apoderar do Natal, por exemplo, elas sabem que aquilo não é certo. São mais espertas do que podemos admitir, ainda que teimemos em não aceitar isso em nome de uma suposta e perene "inocência" infantil. Nada disso. O que eles veem na tela é apenas um conto de Natal, uma fantasia, como tantas outras. Um pouco diferente aqui e ali, mas no fim de tudo, uma fantasia. Só isso. E ninguém vai sair por aí cortando cabeças só por que a Rainha assim o diz em Alice.
Por isso me irrito com gente que se dispõe a mudar o final dos contos escritos pelos irmãos Grimm ou tornar as canções infantis politicamente corretas (e olha que, no original,os contos de fada são muito, mas muito mais cruéis do que as versões lançadas por aqui). Assim não se muda a realidade, tenta-se maquiá-la, pintá-la de azul bebê e cor de rosa. Salva-se o gato, mas e daí? Sabemos muito bem que há muito mais cores por aí, algumas nem tão brilhantes. Aos poucos, as crianças também irão descobrir isso.
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